19 setembro 2006

Caixa Postal 533 6640

De 60 a 80 acessos por dia durante 4 anos, de 1996 a 2000. De 5 a 6 minutos com a agenda da cena de rock baiana, dicas de demos, entrevistas, coberturas de shows, críticas, crônicas, anúncios e classificados (vendas de instrumentos e outros). Por telefone. Editado por Ednilson Sacramento, um jovem produtor cultural, técnico do Crea (na época), morador da Fazenda Grande do Retiro (periferia de Salvador), e mais cinco colaborados – estudantes e músicos. Periodicidade, diária. Atualização feita entre meia noite e uma da manhã na casa de Ednilson. Equipamentos para edição? Telefone, gramofone e fita cassete. Único na América Latina. Nome? Telefanzine.

Funcionava assim: uma ligação para o 533 6640 e acessava-se a caixa postal do Telefanzine. Ouvia-se a vinheta de abertura, apresentação, crônicas, como numa rádio. Se o “usuário” não quisesse continuar, desligava, assim como o rádio, mas tinha que ficar com o ouvido colado no fone. Custava o preço de uma ligação de telefone fixo. Podia-se, inclusive acessar o Telefanzine do telefone público, via cartão.

Acesso fácil

“É uma mídia popular, porque você pode chegar numa praça e ligar pra saber do que tá rolando”, justifica Ednilson, em entrevista ao Gêneros-jornalísticos no último sábado, na Semana do Voluntariado (Shopping Piedade, Centro de Salvador), quando lançou o primeiro livro sobre a história do rock baiano ("Rock baiano: história de uma cultura subterrânea"). Uma mídia tão acessível quanto o rádio feita para um público da periferia, do subúrbio da cidade e, mais especificamente, do underground do rock baiano, na terra do axé-music, tempos de nascimento da internet no Brasil.

Em rede

O segundo motivo do sucesso do Telefanzine, além do acesso, foi a constituição de uma rede de colaboradores, amantes da causa, para além de Salvador, inclusive. Hoje, com a internet, cada produtor de conteúdo, com blog ou site, sabe da importância da rede de contatos, para além da rede tecnológica, pressuposto da web. Ednilson conseguiu, em média, cinco colaboradores que produziam de suas casas por telefone e chegavam a usar telefone celular para transmitir, do show, sua resenha.

É um feito e tanto. Quando a mídia alternativa se resumia a fanzines impressos, folhetos e cartazes, o Telefanzine tinha colaboradores que produziam textos e, de suas casas, ou do telefone público, gravavam sua crônica ou resenha na secretária eletrônica do 533 6640. Hoje, alguns destes continuam produzindo sobre rock, como Miwky, com o blog Burn, Bahia, Burn!, um dos cinco mais importantes da cena rock na web. O Rodrigo Chagas é vocalista de uma banda conhecida já no Brasil, a The Honkers. Róbson Pinto, da banda Sem Acordo, é músico e militante anarquista. Os outros dois eram Lisiane Braga e Bruno Ribeiro. Lisiane apresentava um programa numa rádio comunitária em Santo Estevão (Bahia) e Bruno fazia mestrado em computação gráfica na UFRJ, portanto Rio de Janeiro.


Interativo

Se formar a rede foi si´ples, tem fontes não era problema. Ednilson explica: “A alimentação era feita com os recados de telefone, por fax, mas muita coisa era em campo mesmo, porque a cena era interativa. Não havia dificuldade de fonte”. Uma interatividade que muitos sites buscam hoje com as mídias digitais fora facilmente atingida pelo Telefanzine. Não só se produzia de qualquer parte do país (de onde era mais caro) ou do estado, mas também se deixava recado quando se quisesse.

Ou seja, recado era a palavra-chave. O recado se transformava no que é, por exemplo, um comentário em blog. O recado era a resenha, com o som e burburinho do show. O recado era a crítica. Era só deixar recado. Claro, mas havia uma quantidade limitada, mas suficiente, de recados. O serviço de caixa postal permitia até 100 recados, que eram ouvidos pelo editor, operação que gerava, mensalmente, um custo médio de R$ 300 (incluindo a taxa do serviço).


Mediação de audiência

A caixa postal fornecia ainda um boletim semanal de chamadas. “Consegui nos primeiros meses com a Telebahia [que se tornou Telemar em 1998 com a divisão da Telebrás] um boletim de chamadas para o número 533 6640. Eram de 60 a 80 ligações por dia”, informa Ednilson.

Era possível saber, além da quantidade de acessos, digamos, o lugar e horário da chamada. Se o Telefanzine não tinha um gráfico estatístico como oferece o Weboscope, por exemplo, sabia, com mais precisão do que a TV baiana, quem era seu público, quando acessava e quanto tempo estava no ar (duração do telefonema).

Gênero

De tudo isso, surge a questão: pode-se dizer que o Telefanzine era um gênero jornalístico? Um gênero telefônico, com se diz para os gêneros radiofônicos ou televisivos? Será que, quando tivermos ‘popularizado’, no Brasil, o conteúdo por celular, diremos que são “gêneros telefônicos”? Se o Telefazine trazia a agenda, entrevistas, resenhas e classificados, pode-se dizer que era gênero informativo? Ou também de entretenimento?

Voltam à tona dois aspectos determinantes para a compreensão dos gêneros jornalísticos: 1) o lugar do meio (médium) na constituição do gênero; e 2) o lugar do campo social e suas funções em relação aos ‘tipos de textos’ e, conseqüentemente, a diferença entre informativo e jornalístico.

Comecemos pela segunda. As funções, finalidades ou propósitos do campo jornalístico giram em torno de informar, opinar, interpretar e entreter (embora a AD inclua ‘provocar’). Alguns acreditam que a interpretação está cumprida na função informativa (herança dos norte-americanos e do uso da nomenclatura). Outros, que entreter não é função da atividade jornalística.

O Telefanzine informava, entrevistava, vendia classificados. Mas, poderíamos dizer que ’fazia jornalismo’? É questão da competência prática do habitus. As técnicas de apuração estavam contempladas nos textos do Telefanzine. Provavelmente, não. Simplesmente porque não era produzido por profissionais que detivessem essa competência. Não é só questão de reserva de mercado, mas de função social construída historicamente e cobrada socialmente.

Médium

Com isso, dizemos que o lugar do médium na constituição do gênero deve levar em conta o campo, ou melhor, deve-se cruzar o elemento médium (com seus regimes imanentes, Débray) com o elemento campo. Se dissermos que o telejornal é um subgênero dos gêneros televisivos, estaremos colocando o médium como determinante e a instituição social produtora do programa como secundária. A horizontalidade da programação é uma característica primordial da TV aberta, mas isso não quer dizer que o telejornal da noite possa veicular imagens em petro e branco de um homem esfaquiando uma mulher, em se tratando de cenas de um filme.

O Telefanzine, embora integrado à lógica do meio telefônico, veiculava produtos semelhantes àqueles produzidos numa rádio. Os anúncios, embora na voz do apresentador, eram claramente reconhecidos como tais. Como o são em qualquer médium. Um milhão de pessoas assinou o Ashi Shimbum, jornal japonês via celular, porque é jornal e porque vem com a mobilidade do celular. Mas, então, não há porquê a mídia ser determinante.



Site do Telefanzine (Projeto Experimental de duas estudantes de jornalismo, UFBa)

5 comentários:

Anônimo 04:12  

Fiquei surpresa e muito feliz com a homenagem; sinto muita saudade da época do Telefanzine - e Ednilson Sacramento é um gênio! Naquela época, a música, o cenário underground, as pessoas... Tudo era dinâmico, orgânico, verdadeiro. Dava prazer divulgar heavy metal - parte pela qual eu era responsável no Telefanzine - porque não era só estética; existia uma 'vida' naquilo. E as pessoas, ao contrário de hoje em dia, sabiam porque usavam preto, porque o nome do Morbid Angel era ilegível, sabiam diferenciar Doom de Death Metal. Hoje é tudo pasteurizado. Bateram tudo num liqüidificador gigante, tudo se tornou sintético demais - até as respostas; até as pessoas.
Sinto muito orgulho em ter feito parte de uma idéia como essa; de ter feito parte da equipe de colaboradores do Telefanzine, essa idéia única, e de ter tido a oportunidade de realizar entrevistas com pessoas fantásticas como Carlos Lopes (Dorsal Atlântica)- sem dúvidas, a melhor , o pessoal do Angra, da antiga Shadows, Headhunter D.C., Mystifier, Sepultura, Imago Mortis, Stratovarius, Rotting Christ e tantos outros.
Obrigada por não deixar essa lembrança adormecer! :) Muito bom texto!

Unknown 09:39  

Oi Lisiane,
obrigada pela mensagem. Eu concordo, o Ednilson é muito perspicaz. Criar um telefanzine com a tecnologia que tinham...
Parabéns também a vc pelo trabalho.
Abraço.

mov. nac. de busca e apoi a pessoas desaparecidas 16:00  

por que eu não fiquei sabendo deste textinho antes?? muito legal, lia!

Unknown 17:37  

Oi Miwky, obrigada!
E parabéns a vcs, q fizeram um trabalho pioneiro!

mov. nac. de busca e apoi a pessoas desaparecidas 13:53  

de nada!! posso reproduzir o texto numa lista de discussão?? não se preocupe, eu te credito.

beijocas

Site dedicado ao estudo dos gêneros jornalísticos. Criado durante nossa tese de doutorado, 2005. Esse novo layout abre um novo ciclo de estudo, pesquisa, descobertas sobre esse tema tão caro à prática jornalística e ao conhecimento sobre o jornalismo.

  © Blogger templates Brooklyn by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP